segunda-feira, 10 de maio de 2010

Sacrifício

Porque serão os deputados mais dignos do que os escritores?

Sacrificarmo-nos é prescindirmos de um bem imediato a favor de um bem futuro - e, supostamente, maior. Os pais sacrificam-se pelo futuro dos filhos - mas de que lhes vale o sacrifício, quando, por mais renúncias, privações e sacrifícios que se façam, o horizonte desse futuro é cada vez mais nebuloso? Não vivi época alguma em que não se exigissem sacrifícios aos portugueses. Antes da democracia, nem se lhes exigiam: impunham-se-lhes. Como lembrava - e bem - Isabel do Carmo no "Notícias Magazine" do passado domingo, "até aos anos sessenta morria-se de fome. Os médicos não estavam muito à vontade e mesmo assim temos os atestados de óbito que identificam a fome como a causa da morte". Convém recordar estes factos aos mais novos ou aos privilegiados de sempre (os mesmos, antes e depois), porque com o desvario da nova crise as pessoas dão em romancear a ditadura salazarista, como se não fosse ela a causa profunda da miséria física e moral a que nos habituámos.

Mas há limites para os sacrifícios que se podem pedir à população. Sobretudo, não pode pedir-se ao povo que aperte os furos do cinto que já não tem, enquanto as elites nadam num mar de ostentação que é já mais do que acintoso - é uma provocação. Entre 1983 e 85, os governos do Bloco Central chegaram a cortar o 13º mês - e os portugueses acataram o sacrifício, entendendo que seria para o bem comum. Mas agora essa ilusão está perdida: o PEC - que o Expresso rebaptizou com exactidão como 'Plano de Emagrecimento do Contribuinte', e que também pode significar 'Plano de Empobrecimento da Canalha' - é um atentado aos direitos dos cidadãos. Porquê? Porque esfola os já esfolados - a classe média, que nos últimos anos tem decaído perigosamente para as franjas da pobreza. As grandes fortunas continuarão imunes e impantes: nunca estão em nome dos seus donos, vicejam em offshores, não são declaradas. Será difícil apanhá-las? Não me parece: é fazer as contas aos bólides, mansões, jóias, barcos e outras luxarices, e ir atrás das declarações fiscais dos seus usufrutuários. Antes disso, há coisas simples: a primeira e mais importante é dar um sinal de autêntica austeridade a partir de cima. Cortar prémios de má gestão (a boa só por acaso ou arrasto é premiada) não chega: é preciso reduzir os salários dos gestores públicos. Se a presidente-executiva da EDP Renováveis tem um salário bruto de 348 mil euros ano (praticamente 25 mil euros por mês), como é que querem que o povo aceite de bom grado um aumento na conta da luz? E este é apenas um exemplo entre muitas dezenas de salários escandalosamente incompatíveis com a crise.

Por outro lado, não são os deputados os representantes dos seus eleitores? Então porque é que os ditos eleitores voam por essa Europa (os que podem, claro), em classe turística, e os bilhetinhos de avião dos nossos representantes, mesmo para viagens de duas ou três horas, têm de ser de executiva? Dizem-me alguns que 'a dignidade do cargo' assim o exige. Confesso que tenho a maior dificuldade em perceber o que seja isso da 'dignidade do cargo'. Dignidade têm, ou devem ter, as pessoas. Todas. Acresce que os representantes do povo devem misturar-se com ele, para poderem representá-lo em consonância. Os poetas e escritores, quando convidados por instituições públicas portuguesas a representar o país em conferências ou festivais internacionais, viajam sempre em turística. Explicar-me-ão que dignidade superior possuem os nossos deputados, em relação aos escritores?

Só o exemplo resulta, quando se pretende educar ou moralizar. Isto é válido para as crianças como para as nações. Dois terços dos trabalhadores por conta de outrem recebem menos de 900 euros líquidos por mês. Pergunto: como se pode retirar ainda mais a quem já tão pouco tem? Os dados do Instituto Nacional de Estatística mostram também que há cada vez mais gente a trabalhar mais horas - quase um milhão de pessoas trabalham mais de 41 horas semanais e mais de 330 mil têm dois empregos, para conseguirem sobreviver. É assim que se incentiva o emprego, a esperança, a qualidade de vida - e a sempre tão oficiosamente desejada natalidade?

De politiquice em politiquice, estamos a viver de duodécimos - a Primavera já chegou e o Orçamento do Estado, assim como o orçamento da Câmara Municipal de Lisboa, continuam parados. Na prática, isto significa pagamentos congelados e as pequenas empresas sufocadas, à beira da falência, porque já pagaram os impostos de facturas que não conseguem receber. Arre. Basta. Algo tem que mudar, e depressa.

Inês Pedrosa - Jornalista
Texto publicado na edição da "Única - Expresso", 27 de Março de 2010

Sem comentários:

Enviar um comentário