quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Ode aos Herdeiros Políticos


Ode aos Herdeiros Políticos

Compram aos catorze a primeira gravata
com as cores do Partido que melhor os ilude.
Aos quinze fazem por dar nas vistas no Congresso
da "Jota", seguem a caravana das bases, aclamam
ou apupam pelo cenho das chefias, experimentam
o bailinho das Federações de estudantes.
Sempre voluntariosos, a postos sempre,
para as tarefas de limpeza após combate.
São os chamados anos de formação. Aí aprendem
a compor o gesto, a interpretar humores,
a mentir honestamente, aí aprendem a leveza
das palavras, a escolher o vinho, a espumar
de sorriso nos dentes, o sim e o não
mais oportunos. Aos vinte já conhecem
pelo faro o carisma de uns, a menos valia
de outros, enquanto prosseguem vagos estudos
de Direito ou de Economia. Começam, depois
disso, a fazer valer o cartão de sócio: estão à vista
os primeiros cargos, há trabalho de sapa pela frente,
é preciso minar, desminar, intrigar, reunir.
Só os piores conseguem ultrapassar esta fase.

Há então quem vá pelos municípios, quem prefira
os organismos públicos — tudo depende do golpe
de vista ou dos patrocínios que se tem ou não.
Aos trinta e dois é bem o momento de começar
a integrar as listas, de preferência em lugar
elegível, pondo sempre a baixeza em cima de tudo.

A partir do Parlamento, tudo pode acontecer:
Director de empresa municipal, Coordenador de...,
Assessor de Ministro, Ministro, Comissário ou
Director-Executivo, Embaixador na Provença,
Presidente da Caixa, da PT, da PQP e, mais à frente
(jubileu e corolário de solvente carreira),
o "golden-share" de uma cadeira ao pôr-do-sol.
No final, para os mais obstinados, pode haver
nome de rua (com ou sem estátua) e flores
de panegírico, bombardas, fanfarras de formol.

Autor: José Miguel Silva (Nasceu em Vila Nova de Gaia, Maio de 1969)
Interpretação: António Abujamra

Nota: Poema extraído do livro "Movimentos no Escuro", Editora "Relógio d'Água", Lisboa, 2005.

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